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terça-feira, 19 de abril de 2011

A rapisódia de abril




Esse blog é novo. Pela primeira vez peço desculpas a vocês, leitores, e lhes solicito licença para falar de mim mesma e falando de mim mesma representar várias  famílias brasileiras que compartilham da mesma dor. Quem  de nós já não ouviu falar que há pessoas por aí que tem saudades da ditadura militar? Porém,  só tem saudades da ditadura aqueles que têm a alma de ditador.

Meu nome é Jucilene Pereira Barros, sou filha de Egídeo Pereira Belfforte e de Rosa Pereira Barros. Meu pai foi um jornalista boliviano, partiu da Bolívia para compartilhar com os companheiros da America Latina a discussão e a ação da Guerrilha do Araguaia, a minha mãe era uma jovem camponesa tocantinense, filha de um fazendeiro com um patrimônio considerável, mas que nunca tinha ouvido falar em revolução. Ledo engano: o meu avô Laurenço Barros Quiriba jamais pensou que a guerrilha do Araguaia, sem nem saber da sua existência, o mataria e dividiria sua vida ao meio e de todos da família. No dia 12 de abril foi aniversário do primeiro confronto armado da Guerrilha do Araguaia. Eu e a minha família, como muitas, não temos muitas coisas a comemorar como família, mas como brasileiros, sim. Porque a busca da democracia deixou-me e minhas duas irmãs órfãs de pai e mãe.  A princípio, o bárbaro coronel Curió autorizou o fuzilamento , a violência física e moral do meu pai e seus companheiros. Mas não bastava matá-los, era preciso violentar sua jovem mulher de apenas 24 anos na frente todos e ainda consta no processo o comentário dos bandidos a mando dos torturadores e da ditadura:  “Que pena que matamos a Rosinha do Araguaia. Ela é jovem e bonita, mas que pena que é uma comunista e tínhamos que executá-la”. Mas o monstro da ditadura não se conformava só em matar, era preciso acabar com tudo o que tinha em volta. Meu pai viu sua amada esposa ser abusada e morta diante dos seus olhos, mas ele conseguiu fugir com seus camaradas. Fez da sua dor fonte de mais força para lutar. Lutou por mais algum tempo dentro do belo Rio Araguaia, atravessando o rio de canoa, seguindo em frente com a guerrilha, 40 dias depois ele e seu companheiro Pablo Silveira foram amarrados em uma árvore sem roupas durante três dias. Quem conhece o Amazonas sabe o quanto o calor é úmido e desesperador.

A jovem Teresa de Benguela e seu grupo conseguiram salvá-los mas não foram adiante.  Foram mortos logo pelo sanguinário Curió. 

Faço parte de uma família de história igual a de  muitas e o rio de sangue dividiu nossas vidas, meu avô morreu de amargura, sem nunca ter ido à guerrilha, nós (eu e minhas irmãs) passamos a ser vítimas de preconceito em nossas escolas: quando fazíamos alguma traquinagem éramos destratadas e rapidamente nos diziam: “essas meninas não prestam, são filhas de comunistas”.

Quem conhece a violência na sua essência durante a  inocência de criança nunca mais será tão inocente. Travamos a nossa guerrilha interna na nossa vida afora. As minhas irmãs preferiram negar a nossa história e não tocar no assunto. Eu passo a minha vida procurando um significado para tudo o que aconteceu com o meu pai e o resto da minha família que o Rio mais amado que eu conheço, o mais mágico da minha infância, o Araguaia, partiu meu próprio rio interno ao meio. Como mulher passo a vida inconscientemente procurando meu pai em alguns relacionamentos afetivos fracassados que tive. Tanto que  agora resolvi partir para a luta, seguir a diante aquilo que meu pai começou, procurar minha libertação como  mulher e de outras mulheres como eu, que buscam a sua emancipação, embora tenham consciência que ela não existe, ela é só um insight, uma prefiguração do que precisa acontecer plenamente.

Outros ditadores cruzaram meu caminho nessa busca e dividiram minha vida ao meio. Filho da violência sabe a dor e a felicidade de ser ele mesmo. Agradeço todos os dias da minha vida por ser filho de Egídio Bellforte e de Rosa Barros e não do maldito sanguinário coronel que tem como prêmio da ditadura uma cidade nas margens do Rio Araguaia chamada Curiólândia, presente dos ditadores a ele. Eu ainda tive sorte porque sei onde meus pais e seus amigos foram enterrados e como eles morreram, muitas famílias  não sabem nem o que houve com seus entes queridos.

Essa realidade dramática custa muitos anos de psicanálise e muitos amores frustrados, porque os homens jamais me compreenderão. Esse é o Araguaia dos meus encantos e das minhas dores, a nascente da minha história.

P.S.: Nesse texto agradeço minha psicanalista Maria José Pitágora, que nunca me deixou perder a criança que há em mim, que acha que a felicidade é tomar banho no rio em noite de lua cheia e comer fruta no pé. Obrigada, querida Maria José Pitágora.

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